segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

asas cortadas

chego. é o nosso lar.

a chuva molhou-me e o dia cansou-me. não discirno o que sinto ou não, o que devo sentir ou não.
toco à campainha. perguntas porquê. tinha as mãos molhadas, sabes que está a chover? estás triste, chateada? sei que combinámos não ter nada, mas comprei duas coisinhas para ti. o que tens? sabes que está a chover?

um dos meus maiores receios é tornar-me uma delas. aquelas que critiquei consoante cresci. achavam que eram elas que mandavam, vestiam as calças. algumas vezes enganaram-se, outras nem tanto. cortaram as asas a quem escolheram dividir vida. cortaram-lhe as asas e começaram vidas separadas. não se conta, não se partilha, não se pede, não se zanga. tudo é mais fácil assim. naquele local comum, eles eram pessoas apagadas. ou silenciosas. ou de corpo presente. ou à espera que aquela obrigação acabasse. roubaram-lhes as asas.

um dia falei-te. já lá costumava ir. questionei-te da loucura. disse que às vezes sinto-me louca. sou constantemente duas. oiço aquela voz aqui. disseste-me que os loucos não têm noção de que o são. quis acreditar. divagações aqui e ali. continuo sem me perceber. sem saber porque caminho onde não quero estar, porque não amo o que possuo, porque não luto com os meus maiores medos. ao mesmo tempo, perco noção dos receios e falo de tudo a quem não devo. questiono, partilho as debilidades que não devia saber. penso em demasia. violo outros, arranco-lhes penas.

mais tarde vi-o. fora do local comum. era outra pessoa. parecia mascarado, mas talvez máscara fosse aquela com que vive mais tempo. uma outra vida, fechada dentro de um armário. uma roupa roubada, tinta e brilhantes. reconheci-o, reconheceu-me. tirou os brilhos e mudou de cor. fingimos para sempre e sempre que não tinha acontecido. marcou-me. nunca o disse a quem comum. nunca falámos, pouco sorrimos. a máscara do dia a dia voltou. roubaram-lhe as asas, algures. arranjou um escape. um ninho ou armário. uma criação, não sei se é a que vi , ou se é a que conheço todos os dias.

silêncio. era o nosso lar.

a discussão deu lugar ao acomodar. os gritos à fingida paz. cortei-te as asas?
amo-te mas abafo-te, fecho-te, tapo-te. arranjo modos de calar? arranjo desculpas para mim, pedras para ti. quero e não quero. choro e rio. sofro e alivio-me?

cortei-te as asas.

to: Fábrica de Letras

2 comentários:

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails